"MAIOR É O QUE ESTÁ EM VÓS DO QUE O QUE ESTÁ NO MUNDO." (I JOÃO 4:4)

domingo, outubro 02, 2016

Contos Sacros: Sakyamuni e Vimalakirti - 2/5

- Masaharu Taniguchi - 


Sakyamuni - Vocês conseguiram ver a beleza do paraíso búdico?

Hoosháku - Sim senhor. Vendo com meus próprios olhos o tão majestoso paraíso búdico, sinto que acabo de despertar espiritualmente. Compreendi que este mundo é realmente "reflexo da mente".

Maudgalyayana - Compreendi que a beleza deste mundo não chega nem a milionésima parte da beleza do paraíso búdico.

Sariputra - Venerando Mestre, peço-lhe perdão por ter dito, há pouco, que este mundo é um lugar feio e cheio de imperfeições, sem saber que, na verdade, era o mundo búdico tão belo e majestoso.

Sakyamuni - Não precisa se desculpar. Você simplesmente expôs uma dúvida que a maioria das pessoas tem. Por tê-la expressado, criou a oportunidade para que não só você próprio, como também os outros ampliassem o conhecimento da Verdade. Saiba, porém, que o belo aspecto do paraíso búdico que mostrei a vocês não passa de uma pequena amostra de sua real magnificência. O paraíso búdico não é um mundo tridimensional, e sim um mundo de dimensões infinitas, que o ser humano não pode apreender nem com os cinco sentidos, nem com o sexto sentido. Por isso lhes mostrei sob o aspecto tridimensional que pode ser captado pelos sentidos.

Hoosháku - Graças ao que o senhor nos mostrou, já temos a ideia de como é esplendoroso o paraíso búdico.

Sakyamuni - Sr. Hoosháku, ultimamente não tenho visto o seu amigo Vimalakirti. Como está ele?

Hoosháku - Ele tem estado doente, Venerando.

Sakyamuni - Como?! Ele está doente? Humm... deve haver um motivo para isso. Com certeza, ele manifestou de propósito a doença em seu próprio corpo como um expediente para conduzir os outros à compreensão da Verdade. (Virando-se para os discípulos) Upali, sei que você conhece Vimalakirti, pois disse que o encontrou há algum tempo. Vá visitá-lo.

Upali - Creio não ser merecedor de tal privilégio. Vou explicar por quê: Certa vez, deparei com um de meus discípulos e uma jovem mulher, num colóquio amoroso junto a uma fonte. Como de praxe, expliquei-lhe que o corpo carnal, mesmo tendo uma bela aparência, traz imundícies em seu interior, e aconselhei-o a banir as paixões mundanais. Aí surgiu Vimalakirti, e explicou que não é preciso se empenhar em combater as paixões mundanais porque elas não têm existência real, e exortou os dois para que se tornassem um casal exemplar e construíssem o paraíso neste mundo. Depois, vendo os jovens apaixonados afastarem-se juntos, cheios de felicidade, ele disse que neles estavam refletidos o paraíso búdico e a imagem de Buda, e que todos estão salvos desde o princípio, pois este mundo é, em sua essência, o mundo búdico repleto de Luz. Aquelas palavras me abriram os olhos da mente. A sabedoria de Vimalakirti é muito maior que a minha, e sinto-me indigno de visitá-lo como representante do senhor e de meus colegas.

Sakyamuni - Pelo que você me contou, percebo que Vimalakirti alcançou um nível espiritual muito elevado. Ele apreendeu a Essência perfeita do ser, transcendendo o fenômeno. Sim, ele tem razão: todos estão salvos desde o princípio.

Subhuti, de todos os meus discípulos, você é o que melhor compreende a inexistência do fenômeno e apreende a Essência absoluta e perfeita dos seres. Portanto, considero-o a pessoa mais qualificada para visitar Vimalakirti como nosso representante.

Subhuti - (Hesitante) Agradeço-lhe a consideração, mas sou indigno de tão importante missão.

Sakyamuni - (Sorrindo) Por quê? Explique-nos.

Subhuti - Certo dia, eu andava pela cidade fazendo mendicância religiosa nas casas dos ricos. A certa altura, bati à porta de uma mansão para pedir um prato de comida. Olhando para o rosto da pessoa que veio me atender, constatei, surpreso, que era Vimalakirti.

Sakyamuni - Ah, isso é muito interessante. E depois?

Subhuti - Vimalakirti pegou minha tigela, levou-a para dentro, e depois trouxe-a preenchida de comida. Mas continuou retendo a tigela. Por isso, estendi a mão, mas mesmo assim ele não me entregou a tigela.

Sakyamuni - Humm... E então?

Subhuti - Ele disse que tinha algo a me dizer antes de me entregar a tigela. Perguntou-me: "Por que você só percorre as casas dos ricos para fazer a mendicância religiosa, se seu mestre Sakyamuni ensina que, nos tempos de escassez de alimentos, é preciso intensificar a prática da mendicância religiosa e pedir esmolas com mais assiduidade justamente na casa dos pobres?"

Sakyamuni - E o que você respondeu?

Subhuti - Eu respondi assim: "Os ricos têm muitas posses. Se têm muitas posses, é porque são gananciosos. Visito as casas dos ricos para fazer a mendicância religiosa com intuito de ajudá-los a se tornarem menos gananciosos."

Sakyamuni - Ele não aceitou esse argumento, não é?

Subhuti - Não. Ele me fez a seguinte admoestação: "A ganância não se restringe apenas aos ricos. Há também muitos pobres que são gananciosos. Estes são pobres justamente porque perderam a liberdade da mente, perseguindo avidamente os objetos de seu desejo e ficando obcecado por eles. Devemos tratar imparcialmente os ricos e os pobres. Devemos fazer a mendicância religiosa tanto na casa dos ricos como na dos pobres para eliminar a ganância deles". Foi isso que Vimalakirti me disse.

Sakyamuni - Depois de fazer-lhe esse sermão, com certeza ele lhe perguntou: "O alimento tem existência real ou não?".

Subhuti - Ele me perguntou exatamente isso. Como o senhor sabe?

Sakyamuni - Sei de tudo. Mas conte-me como você respondeu a tal pergunta.

Subhuti - Eu respondo que "o alimento não tem existência real". Então Vimalakirti me perguntou: "Se sabe que o alimento não tem existência real, por que viestes pedir um prato de comida?".

Sakyamuni - E dessa vez, o que você respondeu?

Subhuti - As palavras dele me deixaram confuso, e fiquei hesitando, sem saber o que responder. Então, ele assim explicou o sentido da prática de mendicância religiosa: "Compreender a irrealidade do corpo carnal, sem experimentar a sua destruição; pedir um prato de comida, mesmo sabendo que ele é algo que não tem existência real – é nisso que consiste a mendicância religiosa. Saber que tanto o corpo como o alimento são irreais, e no entanto comer essa comida irreal para acolher o sentimento caridoso do doador; com isso assimila-se, não a comida material, mas a misericórdia búdica.

Na verdade, não existe nem o que dá esmola, nem o que recebe esmola, pois em sua Essência todos são iguais. A verdadeira mendicância religiosa consiste em lidar com a vida mundanal, ciente da perfeição e igualdade de todos os seres e sua Essência. Consiste em não ficar obcecado com a ideia de irrealidade, embora sabendo que o fenômeno é irreal, e em contemplar a Essência perfeita e absoluta de todas as pessoas, mesmo estando no mundo fenomênico. Praticar a mendicância religiosa não é tornar-se um homem comum, mas também não é distanciar-se do homem comum; não é ser santo, mas também não é distanciar-se da santidade; é ser transcendente e absolutamente livre no agir. Se você está preparado para seguir o mestre dos hereges, cair no inferno e tornar-se instrumento do demônio, receba esta comida".

Foi isso que Vimalakirti disse a mim.

Sakyamuni - Ele é um grande homem.

Maha-Kasyapa - Que coisa estranha Vimalakirti lhe disse, hein, irmão Subhuti! E você recebeu dele essa comida, que o levaria a tornar-se seguidor do mestre herege e o faria cair no inferno?

Subhuti - Não. Não ousei ticar nela. Não entendi bem o que Vimalakirti queria dizer com aquilo, nem soube como responder. Por isso, quis ir embora deixando lá mesmo a minha tigela.

Maha-Kasyapa - E que fez Vimalakirti?

Subhuti - Ele me disse: "Pegue sua tigela e vá sem temer coisa alguma". E disse mais: "Todo fenômeno é como miragem. Não tema, mesmo que ouça palavras ameaçadoras de um homem fenomênico que, na verdade, é Buda dissimulado. As palavras deste mundo são para expressar coisas e fatos fenomênicos, e não para expressar a Essência absoluta e perfeita. O sábio ouve aquilo que está além das palavras e vê aquilo que está além das letras. Não se prenda ao que eu lhe disse, e pegue esta tigela". Quando ele terminou de falar, ouviu-se um coro celestial executado por inúmeros entes celestiais que naquele momento despertaram para a Verdade.

Pelo fato que acabei de narrar, não me sinto qualificado para visitar Vimalakirti, representando o senhor e meus colegas.

Sakyamuni - Rahula, gostaria que você que é meu filho, fosse visitar Vimalakirti como meu representante.

Rahula - Venerado pai e Mestre, sinto-me honrado pela consideração, mas eu também me considero indigno de comparecer à presença de Vimalakirti.

Sakyamuni - Por quê?

Rahula - Certa vez, quando eu estava pregando a doutrina numa praça pública, chegaram muitos homens ricos e me perguntaram: "O senhor é filho de Sakyamuni, portanto um príncipe. No entanto, renunciou à coroa e tornou-se monge. Que vantagens o senhor tem, optando pela vida monástica?". Eu comecei a explicar, como de praxe, os méritos da vida monástica. Aí veio Vimalakirti e me disse: "Rahula, a vida monástica transcende as vantagens ou os méritos. É um grande erro optar pela vida monástica visando vantagens. Tornar-se monge é justamente desfazer-se do mesquinho desejo de alcançar graças. O verdadeiro monge é aquele que tem consciência de que não são existências reais nem as graças nem o eu que as recebe, e vive natural e espontaneamente segundo o fluir da Grande Vida. Um monge que vive calculando o montante dos donativos e esperando favores não é um verdadeiro monge, ainda que vista hábito. Pode-se dizer, portanto, que mesmo entre as pessoas comuns existem aqueles que são moco verdadeiros monges, e mesmo entre os monges existem aqueles que não passam de homens comuns".

Ouvindo estas palavras de Vimalakirti, os homens ricos perguntaram: "Então, para ser monge, a pessoa não precisa abandonar sua própria casa, não é?". E Vimalakirti respondeu: "O essencial é abandonar a atitude mental mesquinha de considerar a casa material como sua morada e passar a considerar o Universo como seu lar". Ouvindo isso, aqueles homens ricos conscientizaram a natureza búdica de si mesmos e alcançaram o despertar espiritual. Diante da sabedoria de Vimalakirti, sinto-me tão pequeno que não saberia o que dizer a ele.

Sakyamuni - E você, Ananda? Você é o mais erudito de todos os meus discípulos. Com certeza poderá ir visitar Vimalakirti e manter uma conversa com ele, de igual para igual.

Ananda - Nisso o senhor está enganado, pois eu também não me sinto capacitado para isso. Certa vez, ele derrotou também a mim, com seus argumentos.

Sakyamuni - Sobre que assunto?

Ananda - Sobre a questão referente a doença. Mestre, lembra-se de quando o senhor esteve meio adoentado, há algum tempo? Pois naquela ocasião, desejando conseguir leite de vaca, que lhe faria muito bem, saí de madrugada para fazer a mendicância religiosa e parei diante da mansão de um brâmane. Nesse momento chegou Vimalakirti, e me perguntou: "Ananda, por que você saiu tão cedo para fazer mendicância religiosa?". E eu, inadvertidamente, respondi: "É que eu pretendo conseguir leite de vaca para oferecer ao meu mestre, visto que ele parece estar meio adoentado". Então Vimalakirti me disse: "Não diga bobagem, Ananda! Não sabe que o corpo de Sakyamuni é corpo invulnerável e indestrutível? Seu mestre Sakyamuni é um ser iluminado que venceu todos os carmas negativos e paixões mundanais. É impossível surgir doença no corpo invulnerável e indestrutível do ser iluminado. Não faça, diante de ninguém, afirmações como essa de que Sakyamuni encontra-se adoentado. Jamais profira palavras que gerem ilusões. Mesmo aqueles que não tenham acumulado virtudes e boas ações, raramente adoecem. Assim sendo, é lógico que os seres iluminados estão totalmente imunes a doença. Ananda, o corpo de seu mestre não é um corpo carnal, e sim corpo espiritual; não é corpo maculado, e sim corpo indestrutível. É impossível que Sakyamuni, cujo corpo é espiritual, imaculado e indestrutível, fique adoentado, não é verdade? Você, com essa conduta errônea que está tomando, pode semear dúvidas na mente dos outros. Portanto, é melhor afastar-se daqui o mais rápido possível".

Como podem perceber, não estou à altura da admirável capacidade de argumentação de Vimalakirti, razão pela qual não me sinto capaz de desempenhar a tarefa em questão.

Sakyamuni - Não há nenhum voluntário que se ofereça para ir visitar Vimalakirti como nosso representante? Vejo que nenhum dos discípulos aqui se habilita a cumprir essa tarefa. Que pena... Já que é assim, vocês estão dispensados. Vou chamar o bodhisatva Maitreya.
Cont...

Do livro: "A Verdade da Vida, volume 32"; pp. 57-67

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